sexta-feira, 18 de abril de 2008

Vagamundeamos


“No momento mais desordenado da nossa juventude nos metíamos apressadamente, sempre de madrugada, sempre sem ter dormido, sempre sem um centavo nos bolsos, em um vagão de terceira classe... Pouco mais ou pouco menos de vinte anos, providos de uma carga valiosa de loucura inconseqüente que queria transbordar, estender-se, estalar”.

"Confesso que vivi"

Plabo Neruda


Fui embora pra minha Pasárgada, fui encontrar amigos, contextos, silêncios, cachaça, porre curtido, toda inconseqüência, a ingenuidade, o sadismo, a ironia. Fui varar noites, ruas, horas adentro. Começar conversas que nunca tem fim. E lá, só lá era possível, não se fazer nada. Não havia relógios em nossa Pasárgada. E a nenhum de nós, o tempo interessava. Nunca faltava café, cigarros, pastinha de alcaparra, cerveja, cachaça, na pior das hipóteses o Oitenta e oito nos olhava atravessado e carcava na gente, mas lá nunca faltou balde e cama pra cair, quando o fígado e as pernas, já não podiam mais. Os deveres, quais eram os deveres? Nem consigo me lembrar. Parece que não havia, mas havia, é só que, não consigo me lembrar. Eis o que eu carrego dela ainda, a facilidade de não cumprir meu dever sem vergonha e sem culpa. Por comodismo descarado.

Uma era casada, outro casado com uma, uma era namorada consciente, a outra era inconsciente, e eu, uma outra. Mas isso nada tinha que ver com outros, nós éramos a medida mais perfeita. Qualquer mendigo dito profeta podia nos casar, com qualquer dinheiro podíamos beber. Com o tempo que fosse podíamos ir a praia, éramos loucos, se o ar estava bom na praia, queríamos embrulhar e trazer pra casa. E as pessoas olhando atônitas, recriminado, são tudo bando de bestas! Até os nossos trabalhos eram pseudotrabalhos. Esse papo de que o trabalho enobrece o homem que nada, bom mesmo era levar essa vida de bacana. Os trampos eram mais desculpa pra essa santa instituição que é a família, nos deixar em paz.

Nossas gargalhadas ecoam, nossas crianças...Correm pelo quintal, sobem nas árvores, se machucavam e no mesmo instante "milhoram". Era Miguel, Marquinho era Mateus, os meninos eram tão maliciosos, mas uma malícia tão pueril. As nossas crianças, não sei que vão ter na cabeça daqui a algum tempo? Afinal o que tínhamos? Insanidade, ânsias, angústias, alegrias, desenganos, tesão e leveza, tanta, tanta que não se susteve.

Lá pelas tantas percebi, talvez tarde que... A maré das circunstâncias mudou. Minha Pasárgada está suspensa sobre o tempo e o espaço, a ela só vou, indo a mim.

E encontrei num canto qualquer dentro de mim. Como que para ninguém ver, feito menina, escondidinha, chorando, morrendo de rir, "chorrindo" sozinha.


Quero voltar pra Pasárgada

Mas Pasárgada não há mais, sussurrou o poeta.


A meus companheiros de Pasárgada,
o meu mais forte abraço.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

domingo, 6 de abril de 2008

Aboio urbano



-"Feitiço? Lélio perguntou-

Oxente, pois só de viver

No meio dos outros, a gente,

Cada um está fazendo feitiço

Toda hora...Só que não sabe..."

(João Guimarães Rosa)

Aboio, taí eu nem sabia do que se tratava, mas como estava com tempo sobrando...Verdade mesmo é que sobrando não tava não. É que se a gente deixa de fazer o que deve, aí sobra tempo pra daná e até isso eu faço mais do que devo. Pois então entrei na sala. E logo que eu me assentei, ouço uma voz rouca no meu cangote, não se animem, por que era uma velha desgrenhada que tava berrando atrás de mim pro marido:

- Senta aqui merda! Pra que que vai aí pra frente se tem lugar aqui, ô porra!

O véio tratou de sentar do lado dela, voltou descambando prum lado, depois pro outro e se abundou. E isso teve de acontecer pra eu saber que eu tinha que estar naquela sala bateu tudo direitinho e a vida fez um sentido danado. A maluca da Mariana tinha que estar presente. Ô se tinha. Como se não bastasse, o véio era “avançadinho” ficou dizendo atrocidades durante todo o filme, e a coroa gargalhava em alto e bom som. E todo mundo pra eles:

- Xiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii...

E eles ainda achavam ruim de reclamar e refutavam:

-Xiiiiiiiiiiiiiiiiiii o que, cacete.

Eu incomodada e ao mesmo tempo rindo horrores, afinal que belo exemplo de casal feliz. De um jeito tão particular. Mesmo a felicidade deles representando a infelicidade alheia.

Começa o aboio, um canto estranho e haja chifre pra tudo quanto é lado. E tem vaqueiro filósofo. O vaqueiro que narra o é meio filósofo. Diz coisas intensas com uma rudeza que só o povo do sertão mesmo pra não se ofender. Mas é assim que é. Dizia que quando olha pro céu, pras estrelas. E vê o universo, perde o medo da morte. Segundo o tal cabra vê tudo isso morrendo. E arremata “o universo quando nasceu já tava morrendo”. E é por isso que ele arresolveu Aboiar, por que não pode ter medo da morte que escolhe isso pra fazer a vida. O trem do aboio já começou bom da gota.

Eu, besta estava , besta continuei. Como é que pode, eu no centro do Rio de janeiro, tinha acabado de tomar um café e compra um chocolate pr’assistir o filme, cruzado por ruas barulhentas, sinais que só fecham e “de repente não mais que de repente”, estou ouvindo aquele canto a princípio tão estranho, em contato com uma outra forma de ver a vida, quase que um outro pólo. Aquela gente que fala sem pressa, sem a nossa afobação urbana. O vaqueiro fala, fala e eu penso que acabou, mas daí ele dana a falar novamente e termina muito tempo depois. Outro tempo. O amor com que fazem aquilo, a relação que tem com os bois. Que muita gente, mas bota aí, muita gente mesmo, não consegue ter com outras pessoas.

Bravura, rudeza, silêncio, muito silêncio, hei heiiiiiiiii, o aboio. Pra mim resta uma conclusão. Aquele canto começou a me soar muito bem. Hoje descobri minha faceta bovina.