domingo, 6 de abril de 2008

Aboio urbano



-"Feitiço? Lélio perguntou-

Oxente, pois só de viver

No meio dos outros, a gente,

Cada um está fazendo feitiço

Toda hora...Só que não sabe..."

(João Guimarães Rosa)

Aboio, taí eu nem sabia do que se tratava, mas como estava com tempo sobrando...Verdade mesmo é que sobrando não tava não. É que se a gente deixa de fazer o que deve, aí sobra tempo pra daná e até isso eu faço mais do que devo. Pois então entrei na sala. E logo que eu me assentei, ouço uma voz rouca no meu cangote, não se animem, por que era uma velha desgrenhada que tava berrando atrás de mim pro marido:

- Senta aqui merda! Pra que que vai aí pra frente se tem lugar aqui, ô porra!

O véio tratou de sentar do lado dela, voltou descambando prum lado, depois pro outro e se abundou. E isso teve de acontecer pra eu saber que eu tinha que estar naquela sala bateu tudo direitinho e a vida fez um sentido danado. A maluca da Mariana tinha que estar presente. Ô se tinha. Como se não bastasse, o véio era “avançadinho” ficou dizendo atrocidades durante todo o filme, e a coroa gargalhava em alto e bom som. E todo mundo pra eles:

- Xiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii...

E eles ainda achavam ruim de reclamar e refutavam:

-Xiiiiiiiiiiiiiiiiiii o que, cacete.

Eu incomodada e ao mesmo tempo rindo horrores, afinal que belo exemplo de casal feliz. De um jeito tão particular. Mesmo a felicidade deles representando a infelicidade alheia.

Começa o aboio, um canto estranho e haja chifre pra tudo quanto é lado. E tem vaqueiro filósofo. O vaqueiro que narra o é meio filósofo. Diz coisas intensas com uma rudeza que só o povo do sertão mesmo pra não se ofender. Mas é assim que é. Dizia que quando olha pro céu, pras estrelas. E vê o universo, perde o medo da morte. Segundo o tal cabra vê tudo isso morrendo. E arremata “o universo quando nasceu já tava morrendo”. E é por isso que ele arresolveu Aboiar, por que não pode ter medo da morte que escolhe isso pra fazer a vida. O trem do aboio já começou bom da gota.

Eu, besta estava , besta continuei. Como é que pode, eu no centro do Rio de janeiro, tinha acabado de tomar um café e compra um chocolate pr’assistir o filme, cruzado por ruas barulhentas, sinais que só fecham e “de repente não mais que de repente”, estou ouvindo aquele canto a princípio tão estranho, em contato com uma outra forma de ver a vida, quase que um outro pólo. Aquela gente que fala sem pressa, sem a nossa afobação urbana. O vaqueiro fala, fala e eu penso que acabou, mas daí ele dana a falar novamente e termina muito tempo depois. Outro tempo. O amor com que fazem aquilo, a relação que tem com os bois. Que muita gente, mas bota aí, muita gente mesmo, não consegue ter com outras pessoas.

Bravura, rudeza, silêncio, muito silêncio, hei heiiiiiiiii, o aboio. Pra mim resta uma conclusão. Aquele canto começou a me soar muito bem. Hoje descobri minha faceta bovina.




5 comentários:

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  2. Poxa Mari! Parafrasiando a Sandy do Júnior rsrs, é uma "estranha forma de amar" essa narrada por vc da senhora pedindo gentilmente ao parceiro para ele se orientar rsrs, mas é amor né!

    Sei que sentimento é esse, de descobrir coisas novas com alguma dificuldade de "amor a primeira vista ou ouvida", mas somos pessoas que em nada lembramos os radicais de outroras (eu consigo achar arte onde aparentemente não tem!) pelo menos busco, já é um puta alívio né?

    Então, vamos combinar? Para enxergar o novo temos que ampliar mais do que os sentidos, temos de apurar os corações.

    Vida longa a sua faceta bovina ;)

    Bjão.

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  3. Em tempo...

    Esqueci de dizer. Tenho acompanhado o Blog de longe, e só posso dizer que está cada vez melhor. Encontrou um caminho próprio, que não é o do meio, mas em si, é perfeito.

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  4. Pois é Adélia, se até a Sandy, essa criatura de Deus, sabe das formas estranhas de amar, então dispenso comentários sobre. Mas de fato, oh nóis duas aqui de novo nos encontrando nesse jeito meio tangencial de ver as coisas. E vou te falar que eu gosto muito de ser assim, tem seus males, mas é uma busca que faz valer sempre. Coloca nossa sensibilidade a flor da pele.

    Bjão e a vaca que sou agradece.

    Mariana

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  5. Caro anônimo, muito obrigada pela amaciada no ego.

    Mariana

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